Carta de um adolescente em confinamento
Sim, já sei, demasiado tempo no telemóvel. Devia estudar, devia fazer exercício, devia ler um livro, ou talvez dois, ou talves três. Devia saber fazer isto e aquilo e até quem sabe, acordar amanhã e acharmos todos que é maravilhoso estarmos aqui. Pffff…
Sim, bati com a porta! Talvez porque preciso dela. Preciso de ouvir bem alto para me lembrar que há fisicamente uma barreira que me permite estar comigo, só comigo, com a minha música, os meus desenhos, as letras das canções que (preciso) consigo escrever. Talvez precise da porta e de a bater, como se, por segundos, milésimos de segundos, o meu cérebro interprete que pude sair de casa, com a mochila às costas ou o caderno no bolso e os phones nos ouvidos e vou para a escola.
Nunca pensei dizer isto… Ou só pensar. Vontade de ir para a escola, preferir ir para a escola!
Que seca, que raiva! Aaaahhh. Apetece-me gritar tantas vezes, é frustrante estar aqui, sentir-me preso, limitado, não querer ser desagradável, e ser. Como se dentro de mim houvesse duas partes, ou talvez mais. Uma parte que quer aceitar o que se passa, ser querida com os adultos cá de casa, com os meus irmãos mais novos, que todos os dias acorda com essa vontade e desafio e depois… Depois há uma parte que aparece, enorme, esmagadora, que me comanda numa necessidade, sim necessidade, não é vontade. É uma necessidade urgente de não estar aqui, de estar fora de casa, que me põe a pensar em todos os sítios e planos que tinha (e tenho!) e o tempo a passar. Uma necessidade que me comanda para me inundar de raiva, impaciência, sufoco, só por, às vezes, alguém me fazer uma pergunta ou propor algo para fazermos juntos. E depois até é bom. E depois até me forço a estar, a ser divertido e paciente com todos cá em casa e o tempo passa. Mas é uma necessidade. É maior do que eu.
A urgência dos planos fora de casa, de querer conhecer outras ideias, de fazer planos com os meus amigos e amigas, de voltar a ver aquela pessoa que esteve connosco nas últimas semanas antes disto acontecer, do liceu onde agora a Teresa estuda.
E não é assim… E todos os dias, menos um dia, e na maioria, o desejo que passe rápido e cada vez parece que vai ser muito mais tempo do que pude imaginar. Prefiro nem pensar. Deixei de contar os dias! Sei que data é, porque decidi fazer um calendário de músicas: por cada dia de isolamento, escolho uma música que descreve esse dia. Algumas são minhas, até tenho escrito. Vocês é que acham que não faço “nada de jeito”. Pelo menos, crio! Preciso de criar, inventar, ainda que não seja visível o que crio ou pelo menos, não para vocês. É meu, preciso que seja meu e depois haveria muita pergunta e muita interpretação precipitada sobre o que escrevi, sobre o meu estado, sobre claro, a minha tristeza. Eu compreendo, a sério que compreendo porque sei que é preocupação. Ter putos adolescentes deve ser tramado para vocês, para os pais e mães em geral. Eu próprio tenho dificuldade em ser eu, todos os dias. Olhar-me, reconhecer-me, analisar e sentir cada membro meu, a cor dos meus olhos, do meu cabelo, a forma como me mexo, como os meus músculos são, a pele, os sinais, os pêlos. Borbulhas que não largam, que persistem, como vulcões que entram em erupção sem aviso, por aqui e por ali.
Por isso passo-me! Passo-me quando a minha mãe vem e analisa as borbulhas ou é excessivamente cuidadosa (ou direi crítica…) com o que como ou como me alimento, muito rápido, muito tarde, muito cedo. Tenho fome! Muita! E em casa, mais! Não falta comida aqui. Mas nalgumas casas já falta, fizemos umas compras para a família do Bugs. Foi mesmo urgente. Nem imagino…
Mas dentro de mim há uma pequena grande monstra que tem muito mais fome em casa. Li umas cenas, sobre as carências emocionais e a fome emocional, talvez possa estar assim mesmo. A preencher com comida todos os meus espaços vazios, as tais necessidades de vida que em casa não são devidamente preenchidas. De qualquer modo, epá, mãe, dá um intervalo na crítica, peço-te, é duro de mais saber que quando me aproximo da cozinha, já estás a vigiar, como se fosse fazer algo de errado. Por isso, vou à noite. Sim, deito-me tarde, mais tarde do que seria bom. É uma necessidade urgente, é o meu tempo possível só meu, quando todos se deitam, ficam em silêncio e o espaço é só meu. Preciso disso. Preciso mesmo. Não era assim. Começou a ser de um momento para o outro, com isso veio a melancolia, ficar mais reservado, ver-vos com umas lentes que, admitamos, vos tiram atributos. Fazem de vocês pessoas e tiram-vos de heróis. Já me disseram que um dia voltam a ser heróis. Como se pessoa e herói, um dia, possam ser partes da mesma pessoa. Talvez lá cheguemos. Mas agora não. Agora vejo-vos os defeitos, os erros, as ideias de que discordo, as opções que não quero fazer e a vontade de ser eu, eu mesmo.
Talvez percebendo que agora vos vejo assim, compreendam melhor como é ainda mais sufocante não estar fora de casa, não ir sozinho ter com os meus amigos. Nem sozinho, nem acompanhado. Talvez assim compreendam que precise ainda mais do meu quarto com a porta fechada, decorado por mim, com as cores que gosto, com os quadros que quero, aliás, sem eles! E sim, preciso tanto dos meus amigos, do tempo com eles e sim, hoje à distância podemos continuar a estar juntos. Claro que não é a mesma coisa! Volto a realçar que eu sei que não é a mesma coisa e não, não acho que seja. Mas é o que é. E é a única ligação possível neste momento para que a urgência visceral de comunicarmos, interagirmos, conhecermos e convivermos, aconteça! Sim, passo muito tempo online, demasiado, talvez, porque preciso! Porque é isso que está a acontecer, a necessidade de tempo com os amigos, com novas formas, com as pessoas com que me identifico, que melhor me compreendem, com partilha de valores, ideias e piadas.
Lamento se isto vos custa. Talvez possam pedir ajuda para lidar com isto de ter um filho adolescente. A sério, não estou a brincar. Talvez possam perceber que faz parte e que não é porque vos quero mal ou porque não gosto de vocês. É porque preciso mesmo. O meu cérebro como que me impulsiona para isso, como que me afasta um pouco daqui e me faz querer ir lá fora, conhecer outras pessoas, ver como se faz noutros sítios, como se pensa diferente.
Por isso. Mais uma vez. Não estou com um problema de adição tecnológica, não estou a inundar-me de videjogos como se fugisse da realidade. (sim, conheço alguns que o fazem, mas já faziam! E esses talvez precisem mesmo de ser parados e ajudados, se não, no fim da quarentena, se já não faziam nada sem ser ir às aulas, nem às aulas vão saber ir…), estou a manter o contacto com quem mais preciso e com quem me compreende! Preciso de amigos e de falar com eles. Se fosse no vosso tempo… Mas é agora. É hoje. E hoje é isto que está disponível e ainda bem. Gostava mesmo que pudessem entender isto e que aquela cena que falámos da flexibilidade e tolerância entre nós, fosse também para isto.
E depois tempo. Preciso de tempo. Sei que não sou criança e não quero ser mas nunca fiz isto. Vocês também não. Não faço ideia como é isto de receber tarefas dos professores pelo email de um dia para o outro, planear o meu estudo sem ter datas concretas à vista, não sei. Pronto, não sei. E ontem escrevi: e é suposto saber? Será suposto saber?
Acho que não. Não sabemos fazer isto e eu também não sei. Nunca aprendi a planear sem objectivos, nunca aprendi a ter aulas em casa, nunca aprendi a estar sozinho no meu quarto e a ter tarefas que geralmente fazemos em grupo, com a turma a suspirar, com recadinhos à mistura e com a certeza tão confortante de que a seguir haverá intervalo. E depois outro, e depois mais outro. E depois, ansiamos que chegue o fim-de-semana para irmos sair, ou as férias porque planeamos em segredo um inter-rail ou um primeiro fim-de-semana com a turma a acampar. E agora não.
E é isto. E isto está a ser difícil, todos os dias. Estarei a adolescer? Em confinamento?
*a todas e a todos os adolescentes com quem trabalho e que me dão o privilégio da partilha e de me ajudarem a (tentar) não me esquecer como é importante adolescer, a minha gratidão e admiração pela resiliência, coragem e capacidade de se reiventarem. Tem sido um prazer trabalharmos juntos, mesmo à distância.
Rita Castanheira Alves