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As melhores prendas de Natal segundo a minha avó: Uma viagem sobre o Natal e os valores que transmit

Minha netinha,

Deixo-te esta carta, uma carta de lembretes a partir do que vivi e do que vivemos para que, no tempo que há-de vir em que já não estarei aqui para pegar na tua mãozinha e relembrar-te com histórias, memórias e gestos, aquilo que te ensinei sobre o Natal. Sei que agora adulta também, me dirias que o Natal, como qualquer coisa na vida, é o que cada um quiser que seja, porque somos livres na escolha e no ser e estar. Mas aprendi com a vida que há muito que merece ser deixado, e mesmo nessa liberdade que tanto prezas, há tanto que queria que não se perdesse, mesmo quando já não te puder agarrar na mãozinha para te contar uma história das tantas que vivi. Apercebi-me que todos os lembretes que te deixo não se compram, não se encomendam, não estão nos catálogos, nem nas prateleiras das lojas. Estão dentro de nós, podemos usá-los sempre, tê-los e fazê-los a qualquer momento, sozinhos ou acompanhados e duram para sempre. Não se estragam. E isso é o melhor presente que se pode ter, até sermos adultos de idade avançada como eu. Velha não, porque velhos são os trapos!

O primeiro lembrete que te deixo: Recordar. Este lembrete vai para o tempo muito antigo, em que eu também fui criança. Não fui sempre avó. Também fui criança no Natal e não só. Fecho os olhos tantas vezes aqui sozinha sentada e viajo até lá. Ouço a voz ameninada, o risinho tímido, a expectativa de saber se poderia ter um bocadinho de massa amassada pelas tias para fazer coscorões ou se podia mergulhar o dedo na canela e pôr no nariz, para depois espirrar. Na rua, os homens a fazer um grande madeiro, um fogo que me hipnotizava e que tanto queria, como os rapazes podiam fazer, saltá-lo um dia. Mas não podia. Além de criança, era menina. Então sonhava que o saltava, com um salto muito, muito alto, o maior salto da aldeia. Depois acordar de manhã e correr para o sapatinho, e este parecer demasiado grande para o que lá estava dentro. O sorriso da minha mãe quando nos via espreitar com os olhos muito abertos e a saltarmos excitados para saber o que lá estaria dentro. Olhávamos mesmo lá para dentro, quase a enfiar a cabeça dentro da bota, virávamos a bota ao contrário, abanávamos para nos certificarmos que não tinha mesmo mais nada, não fôssemos, por distracção, não nos aperceber que lá estaria mais algum presente. Não estava. Um bordadinho, uma mini-boneca feita pela minha avó ou um doce. Ou às vezes, nada, só a lágrima no sorriso da minha mãe. Mas dentro de mim, o mesmo pensamento: - Para o ano é que vai ser. E o beijinho da minha mãe logo seguido do pedido de ajuda para prepararmos o almoço do Natal, enquanto limpava com a mão marcada do trabalho, a lágrima que saiu com o sorriso da manhã de Natal. Depois, os primos e as primas deixavam a desilusão da bota (quase) vazia para trás e era uma tarde de brincadeira, de comer coscorões e de roubar musgo do presépio, que guardava no meu quarto, como uma pedra preciosa, um troféu. E ria-me muito, como era bom ter lá os primos e as primas e brincarmos. Sem brinquedos, mas com muita imaginação. Recorda, e volta a recordar sempre, como foi, quem foste, o que fizeste... É tão mágico, fácil e não precisamos de dinheiro, nem de saber se há stock disponível.

O segundo lembrete que te deixo: Fantasiar e imaginar. Também não há na loja. Não está em nenhum site, nem se encomenda para entrega em casa. Constrói-se. Eu construí contigo quando eras pequena e com os netinhos todos. A arca lá em casa que abríamos para tirarmos as roupas para se mascararem, o presépio que construíamos juntos só na casa da avó, o que o tornava mais especial por isso, com a história da lavadeira e da sua família, o espelho que fazia de lago e que tanto te espantava, os patinhos, alguns já de plástico, outros ainda de barro, o pastor que sempre te intrigou como conseguia reunir todas as ovelhas se elas não percebiam português. Era brincadeira para uma tarde e para tantas durante o Natal em que pedias para ir brincar para o presépio e onde te observava a fazer histórias entre as personagens. Fantasiavas muito durante horas. E mais tarde, porque o Pai Natal passou a ser na vossa infância, o senhor que trazia as prendas, modernizei-me e o Pai Natal juntou-se ao menino Jesus. E então arranjámos um fato de Pai Natal e o tio vestiu-se. Tu não te querias aproximar. Ficavas muito séria a olhar pela chaminé lá de casa, um 14º andar de um prédio moderno, essa parte era mais duvidosa, bem sei, mas ensinei-te que era verdade se acreditavas dentro de ti. E assim se fez os Natais da tua infância, com muita fantasia, sonhos e imaginação. Já havia bonecos que faziam bolinhas, com dentes que cresciam quando se apertava o braço e carrinhos que se transformavam em robots. Reclames na televisão com jogos que apontavas e pedias, catálogos com promoções, muitas cores e um dedinho que ia apontando, mas rapidamente o fechávamos e íamos até à associação.

E isso leva-me ao próximo lembrete que quero que guardes: solidariedade. No Natal e como sempre tentei ser exemplo, cuidar e ajudar o próximo, todos os momentos. Ter compaixão, saber que há crianças e adultos que não têm o que temos e que precisam do que nos chega sem esforço. E no quentinho do Natal e na carta que se envia ao Pai Natal lembrarmo-nos de quem não tem e precisa, dar do nosso para que o Pai Natal chegue aos outros meninos e meninas, saber largar e não desenvolver um sentido de posse indiferente ao outro. Seja em casa ou fora dela. E na associação, não só mas também no Natal, comigo e nos teus passinhos pequenos mas decididos, de mão dada, lá ias curiosa, ajudar na arrumação das roupas e na divisão das mercearias que as famílias vinham buscar, participavas admirada e aprendendo que é bom ajudar, que sabe bem apenas porque alguém fica melhor do que está. E depois a festa de Natal, as rifas, o almoço de caridade e a associação aberta a todos, que vinham buscar o que precisavam e agradecer. E ao final do dia, a contares aos teus pais, cheia de amor dentro, porque ajudaste, deste um brinquedo e viste um sorriso de uma criança como tu, ou aquela senhora que precisava tanto de uma camisola quentinha e que deu um abraço tão forte à avó. Quero muito que o Natal seja sempre solidariedade, partilha, saber largar e não ficar excessivamente egoísta e sem capacidade de sentir compaixão pelo outro, seja na nossa família e com os amigos, cuidando deles, olhando ao que precisam, perguntando como estão e estando próxima, seja fora dela. Sentir que ajudar torna-se inevitável e espontâneo, porque não pode ser de outra forma. E não, não se compra na loja, não vem com um brinquedo ou com um jogo, mas é uma enorme prenda, para o Natal e para a vida.

E com o Natal vem a gratidão. Um lembrete que é tão importante fora e dentro de nós, para nós e para os outros. A gratidão pela vida, pelo que se é e se tem. Ensina-se e aprende-se desde pequenos e mantem-se toda a vida. Lembro-me de me sentir a sorrir por dentro quando te via, pequenina, tímida, a agradecer. E mais tarde, de partilhar com as minhas amigas, orgulhosa, porque a minha neta me escreveu uma carta pelos meus já longos 90 anos, a agradecer-me por tudo o que lhe disse, fui e fiz. E a gratidão no Natal é tão importante e às vezes, tão esquecida. Contaste-me, agora já adulta, a situação daquele menino que depois de abrir as prendas, procurou, debaixo dos embrulhos rasgados e amachucados, as prendas que tinha referido na lista ao Pai Natal e que faltavam. Como não encontrou fez uma birra, muito aborrecido. Tivemos uma conversa boa sobre gratidão e a sensação incrível que se tem quando agradecemos aos outros pelo que nos dão e são e quando nos sentimos gratas pelo que somos e temos. O Natal é também gratidão e mesmo em crianças é importante sentir, dar valor e focar no que se tem e como se está e saber largar, não dedicar muito tempo ao que se podia ter, especialmente quando nos foram proporcionadas oportunidades de felicidade, bem-estar, equilíbrio e saúde. Muitas vezes te rias e ficavas baralhada quando te dizia: - Há coisas que só percebemos a falta que nos fazem na ausência das mesmas. E a gratidão transmite-se, cultiva-se e ajuda-nos a dar valor ao que controlamos e a deixar de lado o que não alcançamos.

E tantas vezes senti gratidão nos Nossos Natais, convosco ainda pequeninos, depois da consoada, reunidos com pandeiretas, flautas, a guitarra e papéis com as canções de Natal que juntos cantávamos e que vos queria ensinar. Senti-me a sorrir por dentro por ser avó, por estar rodeada de amor, por poder cantar livremente, ter tantos olhinhos brilhantes, curiosos e entusiasmantes por serem dirigidos pela Avó Maestrina, tornava o serão tão quentinho e as prendas, ainda que com um papel de destaque, não eram assim tão importantes naquele momento musical, de tanto amor e infância. Ser criança é bestial. Poder ser criança é bestial.

E esse é outro dos lembretes que te quero deixar: ser criança. Pudeste ser criança, tiveste tempo e um mundo para ser criança e isso é um direito. Por isso, com as crianças que tens por perto ajuda-as a serem crianças, a ter tempo para crescer, para brincar (muito), para não saber tudo, não crescer depressa demais, não exigir que sejam as “mais tudo” e as melhores em todos os rankings e em todas as listas. Ser criança é fundamental para sermos um dia adultos e receio que no Natal (e não só) esteja a haver muito pouco espaço para ser criança. Para aquilo que é ser criança: acreditar que há uma fábrica de brinquedos, que o Pai Natal vem pelo céu com ajuda de renas e pequenos duendes que o auxiliam, porque, acreditam os adultos, se não dissermos a verdade, pode ser perigoso quando souberem ou porque temos de ser honestos com as crianças; inventar canções e experimentar instrumentos musicais sem saber tocá-los nem ter de vir a saber tocá-los para os tocar; saltar em cima da cama com os primos enquanto os adultos estão na sala; brincar com massa de filhós e comê-la crua; não ter de ir à loja com os pais, percorrer as prateleiras à pressa e vê-los a comprarem o que escolheu e a embrulharem à sua frente, porque “afinal ele já sabe que somos nós que compramos as prendas e não temos muito tempo”; a fazer a árvore de Natal com muitas cores, bolas e com tudo o que quiser, mesmo correndo o risco de ser pirosa; a ter o direito de querer continuar a acreditar no Pai Natal mesmo depois de já não acreditar; a ter avós, pais, tios que sabem ser crianças quando é tempo de brincar, imaginar e criar histórias; a não fazer trabalhos-de-casa durante o Natal que não sejam brincar e ter miminhos da família e dos amigos. Como tu sempre dizias no quarto de brincar lá de casa: - Não percebo como é que um dia se deixa de gostar de brincar. Eu acho que isso nunca vai acontecer comigo. E espero que assim seja e que as crianças que te rodeiam também sintam o mesmo.

E tanto mais te queria deixar como lembretes, como memórias que nos fizeram ser gente, que quero que os pratiques e que os transmitas, mesmo quando não estiver cá para te agarrar na mãozinha e relembrar-te. Lembretes que, mesmo já depois de viver em dois séculos diferentes e de tanto ter sido inventado e tudo se comprar, ainda não se compram, ainda não vêm nos catálogos de brinquedos, mas devem estar sempre debaixo da árvore de Natal para oferecermos a quem mais gostamos, especialmente às crianças. Ensinar-lhes assim que o Natal é muito, mas muito mais do que uma lista de prendas infindável, do que abrir um site e pôr na lista de favoritos todos os brinquedos, jogos, artigos que queremos ter, para depois partilharmos por email com os pais e estes tratarem de nos darem. Sem nos questionarmos, ano após ano, crescemos e perdemos o mais importante: as memórias não se constroem pela quantidade de brinquedos que recebemos mas muito mais pelo que vivemos no Natal e na vida.

Eu espero que para sempre tudo o que transmiti, apesar de não estar no centro comercial, tenha muito valor, para sempre.

Por fim, um lembrete precioso: Natais Felizes, netinha. É o que te desejo, é o que espero que exijas de ti e para ti. Felicidade.

Rita Castanheira Alves

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